Luca acordou no meio da noite respirando intensamente. Olhou para os
dois lados da cama e percebeu que foi apenas um sonho. O mesmo sonho das
últimas noites: o conhecido javali com pelo avermelhado sendo acariciado na
cabeça pela mão de dedos longos e pálidos. Levantou-se, prendeu os longos
cabelos e saiu pela porta de trás da casa em direção ao bosque.
A água corria no seu ritmo habitual no riacho que beirava o bosque e o
separava das casas da aldeia do Povo das Rochas. Luca sentou-se nas raízes de
uma grande árvore, que pelo peso do tempo e dos galhos de sua copa, se curvava
sobre o rio formando a sombra de uma ponte sobre a água. O menino agora era um
jovem de quase 20 anos e embora não fosse alto como sonhou ser quando criança, suas
preocupações agora eram bem diferentes do que na época em que brincava na Rua
Cachoeira.
Como seria sua vida se não tivesse ido para Greenfar? Se não tivesse tocado a passagem e simplesmente tivesse continuado seu caminho para casa com Solk? Como
estariam sua família, os amigos? As memórias dessa época ficavam cada vez mais
distantes. Será que Hadel teria aberto outra passagem para a Terra, ou mundo
lógico como todos a chamavam? Teria ele trazido mais alguém de lá e feito prisioneiro, como tentou com Luca? De todas as dúvidas que vagavam por
sua mente havia uma que era maior que todas as outras: seria possível voltar?
Antes que pudesse concluir seu pensamento, Luca ouviu passos leves se
aproximando e sabia a quem pertenciam.
- Acredito que mesmo que eu fosse um Mago da Natureza e pudesse voar
como uma borboleta você ouviria se eu me levantasse da cama, não? – disse Luca
ainda olhando fixamente para a curva do riacho enquanto Fred se sentava com
certa dificuldade ao seu lado.
- O javali de Hadel de novo, não? – não era necessária uma resposta de Luca
para que Fred soubesse o que estava acontecendo.
- Todo o meu conhecimento de uma vida inteira viajando por Greenfar são
insuficientes para sanar suas dúvidas, meu filho. Queria ter suas respostas,
mas não possuo. O máximo que consigo é tentar fazê-lo feliz aqui.
- Eu não tenho dúvidas disso, Fred. Você sabe que te devo a minha vida
e eu sou feliz aqui, mas é difícil não pensar no que teria acontecido... – Luca
preferiu o silêncio a terminar a frase que Fred já tinha escutado tantas vezes
desde o dia em que ele o encontrou fraco e doente no bosque, após sua fuga de
Hadel.
Fred já tinha quase 9 eras de idade, o que pode ser comparado a quase
70 anos. Quando era jovem percebeu que não tinha habilidades com magia como
seus amigos, então decidiu sair da aldeia e conhecer o mundo. Passou a vida
viajando, conhecendo lugares, pessoas e lendas. Sua coragem se transformou em
conhecimento, mas um dia percebeu que as pernas já não conseguiam carregar tudo
o que aprendera, então decidiu voltar para casa com o objetivo de passar tudo o
que viu para os mais jovens.
Foi recebido na aldeia do Povo das Rochas com muita festa e alegria,
sendo rapidamente reconhecido e respeitado. Foi nomeado um dos conselheiros da
aldeia, junto com Ayla, a Curandeira, e Ortiz, o Shamã.
Quebrando o silencio que havia se estabelecido, Luca disse um pouco
vacilante:
- Fred, vamos entrar novamente na Era da Terra Acima. Pensei em tentar
usar o livreto de Hadel. – apesar da serenidade característica de Fred, ele
tinha receio em saber qual seria a sua reação quando dissesse isso.
Quando fugiu, Luca trouxe o livreto de Hadel, com todas as anotações
que ele fizera enquanto tentava abrir uma passagem para o mundo lógico. Eles já
haviam analisado tudo o que havia nele, mas não era simples. A mente de Hadel
era confusa, assim como suas anotações. Uma das poucas conclusões a que
conseguiram chegar era a necessidade de se fechar o ciclo das 7 eras para se
abrir a passagem.
Fred segurou a respiração por alguns segundos. Ele sabia que enquanto o
ciclo das eras não se encerrasse o assunto não seria um problema, mas havia
chegado a hora que ele mais temia.
- Luca, não sei se você deve...é arriscado. Além disso, você realmente
quer voltar? – sua pergunta tinha mais por trás do que as palavras podiam
expressar. Fred tinha Luca como um filho. Percebendo que poderia ter ferido os
sentimentos de Fred, Luca logo corrigiu.
- Eu preciso de respostas, esclarecimentos...qualquer coisa, Fred. Não
consigo ter uma vida plena, aqui ou em qualquer lugar com tantas perguntas sem
resposta.
Um turbilhão de sentimentos tomou conta de Fred. Ele não queria perder
Luca, mas sabia que ele só seria realmente feliz se pudesse entender melhor o
que aconteceu e talvez, tendo suas respostas, ele escolheria ficar em Greenfar.
Era um risco muito alto, mas necessário. E ele não deixaria Luca fazer isso
sozinho.
Com um longo suspiro, Fred disse:
- Está bem. Vou ajudá-lo, mas precisaremos avisar Ayla. E não será
fácil convencê-la.
Luca sabia que convencer Ayla seria talvez tão complicado quanto abrir
uma passagem, mas o apoio de Fred o deixava muito confiante. Continuaram
sentados na beira do riacho, aguardando o sol nascer por completo para irem até
a casa de Ayla.