sexta-feira, 29 de junho de 2012

Capítulo 6 - Ponta Fadada

        - Venha, Ragi, vamos logo. Estamos chegando em casa, não é ótimo?
        O pequeno javali ruivo soltou um grunhido nada agradável para o homem que se dirigia a ele com sarcasmo enquanto subiam uma colina íngrime coberta por grama queimada. O vento no sentido contrário os impedia de ir mais rápido e as vestes da figura esquálida que andava ao lado do animal balançavam furiosamente. Ao avistar o pequeno casebre quase na beira da falésia, o rosto do homem pálido e de aparência frágil se iluminou em um sorriso macabro.
       - Olhe, Ragi, o solitário Baobá continua escondendo nosso lar. Espero que não tenham nos furtado.
       Ele se referia a grande árvore de tronco largo que ficava entre a casa e o abismo, a protegendo de não ser varrida pelos ventos da região. O local se chamava Ponta Fadada e era completamente desabitado. Devido as condições climáticas e à fragilidade do terreno das falésias na beira do mar, o lugar a qualquer momento poderia desmoronar. Hadel o julgava o lugar perfeito para não ser incomodado.
        Após empurrar com dificuldade a porta emperrada, Hadel e seu javali enfim conseguiram entrar no único lugar que o vento não alcançava. O sibilar fantasmagórico do vento que rangia as janelas trancadas com antigas fechaduras enebriava o homem que olhava fascinado para a casa intocada.
        - A poeira não me incomoda. O que importa é que agora poderemos começar de novo, Ragi. E dessa vez sem erros.
        Hadel colocou alguns gravetos largados no chão na lareira e com um suave movimento da mão direita fez o fogo acender. Sentou-se na grande cadeira de madeira próxima ao calor, enquanto o animal se sentava ao seu lado e ele acariciava sua cabeça.
        Sete eras haviam se passado desde que eles deixaram aquele lugar. Era muito arriscado ficar ali após finalmente abrir uma passagem para o mundo lógico. A energia da passagem era muito forte e diferente de tudo que havia em Greenfar, além de demorar muito tempo para se dissipar. A qualquer momento um Mago ou  alguém com mais sensibilidade energética poderia perceber e importunar. Ficar não seria sensato, mas também havia outro motivo para partir. Ele precisava buscar algo que havia perdido.
        - Estou muito surpreso que ninguém tenha vindo por aqui durante tanto tempo.O que me alegra, é claro, porque tenho certeza de que estamos seguros e sozinhos. Tudo será feito com muita calma e paciência. Não desejo esperar mais um ciclo de eras para atingir meus objetivos. Já está mais do que na hora de beber do conhecimento lógico, não é querido Ragi?
        Mais uma vez o javali grunhiu como se estivesse insatisfeito.
        - Entenderei como um ruído de carinho, seu animal idiota.
        O homem parou de acariciar o mascote e seu olhar passeou pelo ambiente sem cor. Ele se fixou na cama ainda desarrumada com um pano caído no chão e se lembrou da última pessoa que havia deitado ali.
        - Garoto maldito...e eu que acreditei que ele poderia ser a minha fonte, que com ele eu me tornaria o Ser Supremo...três dias aguentando aqueles gemidos, tentando arrancar uma mísera informação, uma gota qualquer de conhecimento...e quando ele finalmente resolve parar com aquele mentira de dores na cabeça sem fim, ele se revolta, sem nem me dar uma pequena chance de mostrar pra ele o quanto ele poderia...me ser útil.
        Hadel se virou para o javali ao seu lado. Segurou seu pescoço com força e disse com raiva:
        - E você, seu inútil, precisava ter ficado na minha frente na hora que ele saiu correndo com meu livreto? Animal burro! Se eu não tivesse tropeçado em você talvez ele não tivesse caído no mar com o elemento mais precioso que eu tinha!
        O javali soltou um ganido fino de dor e se recolheu próximo a parede quando Hadel o soltou. Após o acesso de ódio, o homem voltou a se recostar calmamente na cadeira. Com uma mudança de humor drástica, seu tom de voz agora era de satisfação.
        - Mas agora já está tudo bem, Ragi. Tudo o que estava no livreto ficou na minha mente, já conseguimos o mais importante que aquele menino levou com ele para a morte, o ciclo de eras se encerrou e poderemos começar de novo. Venha para perto do fogo, meu querido, venha.
        O javali com olhar assustado se aproximou lentamente da mão que novamente o acariciava.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Capítulo 5 - Ilusões

        Ayla andou com uma calma atípica até a porta e a fechou logo após Luca sair. Ela esperou ele se afastar e se virou para Fred com um olhar distante. Nenhuma palavra se fazia necessária naquele ambiente silencioso, mas ainda assim a curandeira olhava para Fred como se esperasse uma resposta para uma pergunta que não precisava ser dita.
        - Eu nunca falei nada para ele. Não sei de onde ele tirou aquela frase.
        - Eu sei de onde ele tirou. O Luca está ficando igualzinho a você, e isso me preocupa.
        - Essa deveria ser a última das suas preocupações agora, Ayla. Ele vai tentar abrir uma passagem com a nossa ajuda ou sem. Não é melhor que pelo menos saibamos o que ele está fazendo?
        Memórias invadiram o pensamento de Ayla e o silêncio, nada habitual naquela casa, reinou. Ela não queria concordar com o que Fred dizia. Era errado, arriscado e sem a menor garantia de sucesso, mas ela sabia que se o contrariasse ele ajudaria Luca de qualquer maneira. Esse era o Fred que ela tão bem conhecia. A melhor forma de evitar mais problemas era se envolvendo naquela loucura.
        - Fred... - Ayla deu um longo suspiro antes de continuar - o que vamos fazer?
        Fred se aproximou de Ayla, pegou suas mãos e disse docemente:
        - Precisamos ajudá-lo a encontrar um sentido para ele ficar aqui. Da mesma forma que durante toda a minha vida eu sempre tive um motivo para um dia voltar.
        A energia voltou ao rosto de Ayla e ele soltou as mãos de Fred levantando-se rapidamente indo em direção ao chá que havia começado a preparar quando Fred e Luca chegaram.
        - Por favor, chame Luca. Precisamos ter uma bela conversa com esse rapaizinho antes que ele se atreva a mexer com magia por aí.

                                                                              ***

        Em pouco tempo os três estavam novamente reunidos na pequena saleta da casa de Ayla, tomando o chá de jasmin das flores que a curandeira cultivava e observando, ao centro da mesa, o livreto de Hadel. Era um pequeno caderno com folhas muito finas, quase translúcidas e anotações e rabiscos praticamente indecifráveis. Pouco do que estava anotado ali era compreensível. Por vezes eles viravam o livreto em diversas direções para tentar encontrar um sentido para os garranchos do autor.
        - Não existe uma ordem, tudo foi escrito de maneira aleatória. Como é possível alguém guardar algo tão importante desse jeito? - Ayla estava inconformada com a bagunça.
        - É preciso existir um ponto de partida nessa confusão - disse Fred enquanto analisava uma parte que mais parecia um diário cheio de frases de ódio aos Magos da Natureza.
        - Será que ele precisou da ajuda de um Mago da Natureza para abrir a passagem? - perguntou Luca com inocência.
        - Isso jamais aconteceria. Os Magos da Natureza são também responsáveis pelo equilibrio da energia de Greenfar e isso iria totalmente contra seus princípios.
        - Mas só os Magos dominam magia e energia, e com isso eles poderiam abrir uma passagem facilmente, não?
        Fred se adiantou para responder a Luca:
        - Sim, mas esse definitivamente não seria um Mago de verdade.
        Antes que pudessem voltar a analisar o livreto alguém bateu a porta da casa de Ayla.
        - Oh céus! Me esqueci completamente da vinda de Smarilon. Precisamos arrancar um dente de um menino rebelde.
        Após abrir a porta Ayla deu um longo abraço no homem alto que havia chegado. Suas roupas brancas contrastavam com seu tom moreno de pele e ele parecia muito feliz em vê-la. Smarilion era um Ilusionista, um dom raro e perigoso de se encontrar. Eles tinham o poder de colocar imagens na mente das pessoas, podendo as levar a loucura. Havia dois caminhos para os Ilusionistas: ou escondiam seu dom ou trabalhavam com os curandeiros em casos mais difíceis. Eram como os anestesistas de Greenfar.
        - Minha querida Ayla, como é bom revê-la!
        - Te digo o mesmo, Smarilion. Se recorda de Fred e Luca?
        - É claro, como vão os dois?
        Ao ir em direção aos dois para cumprimentá-los, as anotações do livreto chamaram a atenção do visitante e ele disse em tom irônico:
        - Tem chamado outro ilusionista para ajudá-la, Ayla?
        Os três olharam para Smarilion com curiosidade e a senhora o indagou o porquê dessa pergunta.
        - Anotações como essa só podem ser feitas por ilusionistas. Somos péssimos colocando coisas em ordem, então sempre que tentamos é algo "assim". Geralmente só nós conseguimos decifrar, por misturar a realidade no papel com ilusões que montamos.
        A declaração fazia muito sentido para Luca. Apesar de ser um ilusionista, Hadel não pode usar seu dom com Luca. Embaralhar sua cabeça poderia fazê-lo perder as lembranças do mundo lógico, que é o que interessava a Hadel.
        - Smarilion, como podemos "ler"o que está escrito aqui? - perguntou Luca ansioso.
        O homem pegou o livreto, girou algumas vezes e por fim declarou:
        - Só preciso colocar uma ilusão simples em sua mente e você conseguirá enxergar o que está escrito com clareza.
        Percebendo a ansiedade de Luca, Ayla se adiantou:
        - Mas antes, o dente!
        E a curandeira saiu puxando Smarilion, deixando Fred, Luca e uma grande esperança no ar.
      

domingo, 24 de junho de 2012

Capítulo 4 - A história se repete

         O Povo das Rochas era assim chamado por viver ao pé dos penhascos rochosos da costa oeste da Grande Ilha de Greenfar. A pequena aldeia de Fred era a mais ao Sul da região e por isso, além de levar seus mantimentos típicos para a troca com outras aldeias, também levavam notícias do interior da Grande Ilha , já que eram os primeiros a recebê-las.
         Apesar da localização privilegiada, a vida era muito simples, assim como seus moradores, que viviam com o que o conseguiam com as outras aldeias e com o que a terra, o bosque e o rio oferecim. Ao andar por entre as casas, Luca ainda se lembrava das primeiras impressões que teve quando chegou, procurando um mercado, carros ou postes de luz e também do fascínio pela maneira diferente como tudo acontecia naquele lugar.
         Não havia energia elétrica ou barulhos como buzinas e televisões mal sintonizadas. Os sons vinham da natureza, da água correndo, das folhas se movendo com o vento ou vasos de barro sendo colocados sobre mesas de madeira. As pessoas moviam objetos com pequenos gestos, faziam a colheita nascer em um tempo inacreditável e era possível curar ferimentos só com o toque. Essa última tarefa não era tão simples, por isso toda aldeia precisava ter um curandeiro, alguém com uma notável habilidade de mover a energia dos corpos. E por isso Luca estava vivo hoje, graças às habilidades de Ayla. 
         Não se sabe se foi pelo grande esforço que Ayla fez para o salvar ou pela passagem para Greenfar, mas pouco tempo depois que chegou a aldeia Luca começou a perceber a energia de forma diferente. Era como se tudo em seu entorno o tocasse, mesmo que estivesse distante. Ayla logo percebeu e começou a ensiná-lo a ter controle dessa sensação e também a mover a energia. Sua percepção energética aumentou muito ao longo dos anos – ele já conseguia sentir a energia de animais que estivessem além da entrada do bosque - , mas mover a energia mesmo que de uma flor a outra ainda parecia quase impossível. Sempre que Luca pensava em desistir Ayla dizia: “Você acha que é com nossa magia que fazemos as flores crescerem? É quando acreditamos que se torna possível.” Ela sabia o que dizia.
         Enquanto caminhavam em direção a casa da curandeira, Fred e Luca foram interrompidos bruscamente por pequenas mãozinhas que puxaram suas roupas gritando com euforia:
         - Fledi!! Luca! Venham ver minha dança para a festa das estações? Venham, venham!!
         A garotinha não parou de falar enquanto os puxava para dentro da casa, até que os dois pararam na soleira da porta e Fred disse olhando para o interior:
         - Podemos entrar e ver o show dessa pequenina?
         A mesa estava pronta para a refeição da manhã, enquanto a família dos Trinid se preparava para sentar. O pai, Oli Trinid, se levantou rapidamente e se dirigiu a Fred com certa cerimônia:
         - Fred! Perdoe nossa pequena Alis, espero que elas não os tenha importunado. Nem percebi quando saiu... 
         - Sim, Oli tem razão, Fred! – disse sua esposa enquanto virava-se para a pequena Alis com o intuito de repreendê-la da travessura, mas antes que pudesse dar uma bronca, Fred disse gentilmente para todos sem deixar de dar uma piscadela para a garotinha:
         - Não foi incômodo, eu e Luca estamos ansiosos por ver a dança de Alis.
         A menina então correu para sentá-los na mesa, enquanto suas irmãs chegavam e cumprimentavam com muito respeito Fred e com jovialidade Luca, com exceção de Sarah, a irmã mais velha, que ficou bastante desconcertada ao se deparar com o jovem na mesa de refeição naquela hora e mal conseguiu cumprimentá-lo.
         - A refeição está pronta. Fred e Luca, fiquem a vontade para comer conosco – disse muito gentilmente Tela Trinid, a mãe das 4 meninas que já se serviam na farta mesa. Luca gostava da presença de Tela, seu jeito o lembrava de sua mãe.
         Após a apresentação de Alis, que foi muito aplaudida por todos, Fred pediu licença para que ele e Luca se retirassem. Havia um assunto para ser tratado com Ayla e por mais que Fred quisesse adiar, ele sabia que não seria possível.  Se despediram de todos em meio aos gritinhos histéricos de agradecimento de Alis. Após cruzarem a porta, Oli os seguiu e perguntou:
         - Luca, a ida nas aldeias de cima será hoje, você vem conosco?
         - Claro, contem comigo!
         Luca não sabia como seria a conversa com Ayla, mas não queria dar explicações de possíveis porquês o levariam a não ir com os homens nas trocas entre aldeias. E continuaram em direção a casa florida.
         Ao chegarem nos degraus da casa a porta se abriu e uma senhora surgiu. Apesar de ter quase a mesma idade de Fred, Ayla possuia um olhos azuis muito juvenis e uma maneira muito menos cerimoniosa. Tipicamente, os curandeiros eram pessoas muito sábias, serenas e pacientes. Para Ayla se aplicava somente a parte da sabedoria. Ela poderia ser mais agitada que uma criança e esse era um dos motivos pelos quais a conversa com ela era preocupante, ainda mais sobre um tema tão delicado.
         - Sinto uma energia tensa vinda dos dois, então me contem logo o que está acontecendo. – e foi para pegar chá para os três sem que ninguém solicitasse. Fred e Luca se entreolharam questionando-se quem deveria iniciar a conversa. Os dois conselheiros se conheciam desde a infância e apesar de ficarem muitos anos sem se ver após Fred sair da aldeia ainda mantinham a intimidade de velhos amigos. Talvez por conhecer bem o jeito explosivo de Ayla, Fred tenha iniciado o assunto:
         - Ayla...é chegada novamente a Era de Terra Acima. Luca quer tentar abrir uma passagem para o mundo lógico.
         Como era esperado, após 2 segundos de profundo silêncio, Ayla se manifestou um tanto quanto exaltada:
         - Qual dos dois perdeu o juízo? Me digam agora, assim já sei por qual começo a explicar pela milésima vez o quanto isso é arriscado!
         Luca esboçou uma resposta, mas Fred bateu em seu ombro como sinal para que ele nem tentasse. Ele sabia que qualquer argumentação só teria efeito depois que Ayla pudesse canalizar toda sua energia para fora. E ela continuou:
         - Vocês sabem ou pelo menos conseguem imaginar os riscos que isso pode trazer para a aldeia e para toda Greenfar? Ainda mais sendo realizada por alguém com tão pouca experiência em magia como você, Luca! Esperem! Vocês não estão pensando em usar o maldito livreto, não é? Porque já seria loucura demais tentar fazer isso, ainda mais usando as “instruções” daquele lunático!
Ayla andava de um lado para o outro na sala completamente inconformada. Oscilando entre sussuros e rompantes de exclamações para os dois. Quando viu uma oportunidade para falar, Luca disse:
         - Ayla, eu só tenho essa chance para tentar, é importante.
         A senhora parou de frente para os dois e colocou as mão sobre o rosto. Seu tom agora era de desabafo.
         - Fred, diga para ele, não acredito que você esteja sendo conivente com isso. Luca...Fred...vocês não fazem ideia do que eu tive que fazer para salvá-lo. Eu não sei se consigo fazer de novo, vocês entendem? Luca, você vai colocar sua vida em risco!
         - Ayla, eu não consigo te dizer o quanto sou grato por tudo que você já fez por mim, e o Fred também, é claro, mas eu prefiro arriscar a minha vida nisso do que viver uma vida pela metade.
         Ao ouvir essa frase o semblante de Ayla mudou e toda a agitação foi embora subitamente. Ela se lembrava claramente do dia em que ouvira essa frase pela primeira vez. O unico dia em que não conseguiu convencer alguém a seguir seus conselhos.
         - Luca, por favor, saia. Preciso conversar com Fred em particular.
         Luca saiu da casa confuso. Nunca havia visto Ayla tão abalada.