segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Capítulo 10 - Três pontos de vista

        - Eu não existo mais. Eu não existo, Fred...
        O olhar de Luca estava vazio e ele repetia essa frase com pouca força na voz. Era como se precisasse se ouvir para acreditar naquilo que havia visto através da passagem que ainda brilhava na sua frente. A tela iluminada já não importava mais, ele fora apagado do mundo lógico quando fez a passagem para o mundo mágico. A resposta que ele tanto queria veio carregada de decepção e tristeza. Era arriscado, ele sabia desde o começo, mas não imaginava que seria tão doloroso assim.
        - Meu filho, vamos fechar essa passagem de uma vez e esquecer isso, vamos...
        O corpo de Luca não possuia forças para se levantar, mesmo com a ajuda de Fred.
        O silêncio foi quebrado pelo barulho repentino de algo sendo expelido pela passagem e caindo no chão. Antes que eles pudessem entender o que se passou, a imagem de Hadel apareceu na tela. Os dois se olharam rapidamente, mas antes que a passagem se fechasse o jovem pode perceber uma expressão de ódio se formando no rosto do homem.

***

        O alarme do celular de Solk tocou. Ele desligou o barulho com pressa e buscou uma pequena caixa de remédios no bolso.
        - Pílula vermelha, nível de insanidade mais 12.
        Jogou o remédio em um canteiro de plantas enquanto andava de volta para casa. Havia sido liberado mais cedo do trabalho na firma de advocacia onde trabalhava como assistente do assistente do assistente para ir à consulta mensal com o psiquiatra. Era a mesma rotina todo mês, ele só precisava dar as respostas certas e confirmar que continuava tomando todos os remédios. Remédios esses que ele já não tomava há dois anos e havia desistido de pedir para que seus pais parassem de comprar. Era mais fácil continuar fingindo que vivia dopado como eles acreditavam, afinal era assim que eles o tratavam todo o tempo.
        Ao chegar na rua de casa avistou duas vizinhas conversando e pensou com ironia "Lá está a mãe do Luca, que eu inventei". Ele as cumprimentou formalmente e continuou seu caminho se lembrando de todas as vezes em que implorou para aquela mulher lembrar do seu filho que havia sumido. Por mais que todos dissessem que ele era doido, que o tal Luca não existia, eram muitas memórias com o amigo para que pudessem fazê-lo acreditar que de fato havia enlouquecido. Agora era mais fácil fingir que de fato passou um tempo "perturbado da cabeça" e agora era um homem sério e curado.
        Até que um brilho na esquina da rua chamou sua atenção. Ele parou, olhou rapidamente, mas sabia que não era prudente agir assim dado seu histórico, então continuou andando para casa tentando olhar discretamente o que de fato havia na esquina.
        - Não é possível que eu esteja vendo aquele brilho novamente - falou consigo.
        Solk aguardou a rua ficar vazia e caminhou em direção a tela brilhante que flutuava ao lado de um muro alto. Uma parte sua, provavelmente a que havia absorvido a medicação de tantos anos, o dizia para voltar para casa, mas por outro lado havia uma voz que ainda se lembrava de Luca e que o incentivava a verificar o que era aquilo. Ele parou e ficou observando. Era exatamente a mesma visão que ele teve 8 anos atrás, quando viu seu amigo Luca pela útlima vez. Ele hesitou em continuar sua caminhada ao encontro do espelho, mas sabia que se havia alguma maneira de provar que todos estavam errados, era indo até lá. Respirou profundamente e andou com firmeza até o brilho, mas quando estava prestes a entrar em contato com a superfície luminosa alguém, vindo na direção contrária, trombou com ele e tudo ficou escuro.

***

        Le: Cheguei na Rua Cachoeira. Tem duas casas da lista aqui. Acabei de passar pela primeira, mas é quase uma mansão!
        Gu: Seu pai ia adorar saber que você saiu de casa para pelo menos ir para uma mansão, não acha? rsrsrs
        Le: Só se eu fosse morar em uma das mansões dele. E eu espero que ele só descubra que eu pretendo sair de casa quando já estiver instalada e bem longe.
        Gu: Você deveria parar com essa rixa com ele. É seu pai, minha fofa.
        Le:  Meu pai morreu junto com a minha mãe. Esse que ficou é só um egocêntrico que quer me escravizar em uma das empresas dele.
        A menina ajeitou a mochila no ombro enquanto andava devagar e terminava de digitar a mensagem no celular. Olhou para o papel na outra mão em que estavam os endereços das casas disponíveis para alugar. Colocou o celular no bolso, pegou uma caneta na lateral da mochila e colocou na boca. O celular estava vibrando de novo com uma nova mensagem.
        Gu: Que horas você vai pra facul hoje?
        Antes de responder a mensagem ela percebeu que estava nos fundos da segunda casa que deveria visitar, conforme as fotos que viu na internet. Uma casa pequena de esquina, mas com um muro alto que dificultava enxergar seu interior. Continuou caminhando pelo muro para chegar ao portão e baixou a cabeça para responder a mensagem
        Le: Assim que terminar de visit...
        De repente ela levou um esbarrão tão forte que a fez cair, enquanto seu celular era arremessado para o meio da rua.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Capítulo 9 - Do céu ao inferno

        - Ragi, meu querido, você pode parar de grunhir? Ficarei imensamente agradecido e o recompensarei assim que abrir nossa passagem para o mundo lógico.
       Ainda com um sorriso irônico no rosto, Hadel olhou novamente o calendário circular pendurado na parede que marcava o ciclo das sete Eras de Greenfar, enquanto manuseava a água e o fogo, um em cada mão.
        - É chegada a hora de descobrir as verdades da lógica e dessa vez será perfeito.
        Com um movimento rápido, ele fundiu a água e o fogo, formando uma massa opaca que deslizava de uma mão a outra com leveza. Ele a ergueu com a mão esquerda e a contemplou por alguns instantes. Ele sabia exatamente como deveria agir dessa vez. Pegou um pedaço de papel amassado e o colocou no meio da mistura, que se tornou brilhante. A substância se enrijeceu flutuando como um espelho na frente de Hadel. Seu rosto se iluminou com o triunfo e ele mal conseguia se mover, observando, no interior do espelho, a antiga Rua que ele havia avistado sete Eras atrás. Era preciso cuidado para que nada o atrapalhasse dessa vez enquanto ele observava as imensas construções que existiam do outro lado, algumas estáticas e outras maravilhosamente se movimentando sem nenhuma magia.
        - Venha, Ragi, beba você também dessa fonte.
        O javali não saiu do lugar assustado com o brilho que emanava da passagem. 
        - Temos até o final da Era Terra Acima para observarmos tudo, Ragi, e entender como eles utilizam o poder da lógica. Quando eu conseguir unir a magia e a lógica tudo será diferente. Greenfar entrará em uma nova era. Será extremamente prazeroso ver a queda dos Magos da Natureza quando eles perceberem que não são a maior força que existe com todo seu discurso superior de magia, equilibrio e etc.
        E continuou mergulhado na visão do mundo lógico, enebriado por tudo o que via.

***

        A beira do riacho não era o lugar mais seguro para se abrir uma passagem e Luca sabia que Fred já devia estar procurando por ele. Com todo o cuidado, Luca levou a vasilha com a tela opaca para casa. Sarah insistiu em acompanhá-lo, mas ele sabia que era melhor ninguém saber que ela estava envolvida nisso.
        Fred já estava na porta de casa quando o jovem chegou e sua surpresa em ver o que ele carregava o emudeceu. Eles esvaziaram de forma rude a ponta de uma mesa, colocaram a vasilha em cima e por alguns instantes ficaram observando a matéria fluída que havia se formado com a fusão da água e do fogo.
        O ombro de Luca foi tocado pela mão enrrugada de Fred, que se perguntava como Luca havia conseguido realizar a fusão, mas a fragilidade do conteúdo da vasilha era tanta, que não havia espaço para perguntas. Luca acreditava que ele era a chave que abriria a passagem, por ser um elemento que unia os dois lados, então aproximou sua mão hesitante da superfície opaca e se lembrou da primeira vez que tocou algo semelhante, da sua imprudência, do desespero em que deixou seu amigo Solk. Antes de tocar, ele se virou para Fred e disse:
        - Fred, quero que saiba que você é como um pai para mim. Obrigado por tudo.
        Com os olhos cheios de lágrimas, Fred viu Luca mergulhar a mão na vasilha até o pulso.
        Nada aconteceu.
        Luca colocou a mão repetidas vezes na vasilha, mas o único efeito era sua mão ficar embebida na substância gelatinosa. Ele olhou para Fred decepcionado, procurando alguma resposta.
        - Meu filho, você é uma pessoa, não um elemento. Talvez seja isso.
        Luca saiu correndo e voltou com uma caixa empoeirada. Dentro estavam as roupas que ele usava quando chegou a Greenfar. Dessa vez ele pegou um pedaço da camisa com o desenho desbotado de um Pica Pau risonho e mergulhou na vasilha sem receios. Mais uma vez, nada aconteceu. Depois de diversas tentativas, com todos os itens da caixa, Luca arremessou todas as roupas e a caixa para longe derrubando diversos papéis das prateleiras de Fred.
        Mesmo assustado com a reação do jovem, Fred se aproximou dele com carinho para consolá-lo, mas Luca continuava agressivo e entre lágrimas disse:
        - Me deixa sozinho! Na verdade - disse enquanto se dirigia para o livreto de Hadel caído em um canto - eu preciso encontrar a solução naquilo! No maldito livreto daquele monstro!
        Percebendo o descontrole de Luca, Fred se lançou na frente do jovem para pegar o livreto antes, mas ao se levantar sentiu uma fisgada na coluna. Luca o socorreu e enquanto era ajudado a se sentar em uma cadeira, Fred colocou o livreto sobre a mesa de forma displicente, sem perceber que na verdade o estava jogando na vasilha com a fusão da água e do fogo.
        - Fred, me perdoe, você está bem? Eu não queria agir assim...
        A confusão na cabeça de Luca com o fracasso da passagem e agora percebendo o mal que fez para Fred, o fez abraçá-lo com força.
        - Luca, você conseguiu. - disse Fred enquanto ainda abraçava Luca - veja.
        Atrás de Luca, o conteúdo da vasilha flutuava, iluminado.
        Percebendo o que Fred havia feito com o livreto, Luca disse em euforia:
        - Fred! O livreto era a chave! Por isso Hadel havia arrancado uma folha, foi o que ele usou para abrir a passagem!
        - O Povo do Gelo mantem tradições muito antigas, provavelmente de antes da divisão. O livreto deve ter sido forjado com algum desses costumes.
        Luca se sentou lentamente ao lado de Fred ambos agora hipnotizados pela tela brilhante que mostrava um lugar bem conhecido do jovem.
        Rua Cachoeira. Algumas casas com cores diferentes, os postes de luz também haviam mudado, mas era o mesmo lugar. Um carro passou pela rua e era tão diferente dos que ele conhecia. Seu espírito o dizia para mergulhar naquela tela e ver mais, mas dessa vez ele conhecia os riscos. Logo algo chamou sua atenção. Duas mulheres segurando sacolas de mercado iam na direção da antiga casa de Luca.
        - Minha mãe.
        O olhar de Luca misturava saudade e tristeza. Ela estava bonita, mais velha, cabelos mais curtos. Enquanto elas se aproximavam foi possível ouvir o que elas conversavam.
        - Vamos no shopping amanhã? Preciso comprar a roupa da Carol pra festa da escola.
        - Boa ideia, também não comprei a roupa da Tati. Quero minha filha linda nas fotos.
        Luca ouvia as duas rindo orgulhosas de suas filhas quando murmurou:
        - E agora eu tenho uma irmã...Tati...
        Cada descoberta de tudo o que ele não havia vivido o machucava profundamente, até que outra pessoa apareceu na tela. Era um jovem alto que cruzou com as duas mulheres e as cumprimentou. Ele seguia seu rumo para o outro lado da rua quando parou e olhou como se estivesse vendo a passagem. Ele hesitou, olhou para os dois lados, mas continuou seu caminho. Quando já não era possível vê-lo as duas mulheres continuaram a conversar.
        - Nunca descobriram o que aconteceu com esse menino, não é?
        - Uma pena, mas não. Acho que ele continua tomando medicamentos, mas pelo menos não insiste mais que eu tenho um filho.
        - É normal crianças terem amigos imaginários, mas não como aconteceu com Solk por tantos anos. Até hoje me lembro do dia em que internaram ele, quando ele gritava na sua porta o tal do Luca. Que desespero. Coitada da mãe dele...
        - Agora ele é um jovem começando a vida, bonito, mas a vida com medicamentos não é fácil.
        - É verdade, mas tenho que preparar o almoço das meninas. Trago a Tati para casa no final da tarde, está bem? Ainda devem estar brincando com as bonecas novas.
        As duas se despediram e entraram em suas casas. A rua ficou vazia, assim como o coração de Luca. Ele não existia mais no mundo lógico. Ele havia morrido e acabava de receber essa notícia junto com a notícia de que seu melhor amigo era considerado louco por sua causa. Agora sim ele queria morrer de verdade.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Capítulo 8 - A porta

        Luca não conseguiu dormir pensando em tudo o que deveria fazer no dia seguinte. Ele sabia que a fusão entre a água e o fogo não era algo simples. Somar esses dois elementos sem que se anulassem requeria domínio de energia e magia, e essa segunda habilidade ele não possuia. As palavras de Ayla o ensinando sempre ecoavam em sua mente "Primeiro a sensibilidade energética, que você já possui, depois a habilidade de transferir energia de um objeto para outro, o que você não consegue dominar por completa falta de concentração..." Ele conseguia perceber muito bem a energia a sua volta, mas "mexer" com a energia, como Ayla fazia ao acalmar um corpo febril ou estimular o crescimento das flores, era outra história. Agora era o momento de reunir toda a concentração que pudesse para abrir a passagem, mas ainda faltava o componente mágico e ele sabia exatamente quem poderia ajudá-lo.
        As duas únicas pessoas que sabiam sobre a passagem eram Ayla e Fred, que também não dominavam magia, mas havia uma pessoa, extremamente confiável, que poderia ajudá-lo. Apesar de ser um pouco difícil para Luca pedir favores para Sarah, ele sabia que era a única saída.
        Ainda estava escuro quando Luca chegou até a janela do quarto de Sarah e assobiou imitando um pássaro. Foi preciso repetir o som três vezes até que a jovem abrisse a janela e o olhasse com sono e surpresa.
        - O que houve, Luca? Ainda está escuro!
        - Eu sei, eu sei, mas preciso da sua ajuda e se possível antes que o Sol se levante.
        A menina fez um sinal indicando que iria encontrá-lo e fechou a janela. Luca sabia que não era certo pedir favores para Sarah sabendo que ela jamais negaria, mas sua necessidade de respostas era maior. A filha mais velha dos Trinid logo apareceu e eles caminharam até a entrada do bosque onde não seriam importunados. Luca precisava explicar para Sarah seu plano e convencê-la a participar.
        - Luca, você endoidou. Eu entendo a sua ânsia por entender o que se passou, mas olhe a sua volta. Você é feliz aqui, o Fred é como um pai, todos te adoram e eu...você sabe que pode contar comigo, mesmo não sendo da forma como eu gostaria.
        Ele sabia que esse assunto viria a tona, mas antes que ele tivesse que explicar novamente para Sarah que, apesar das tentativas de ficarem juntos, ele só a via como amiga, ela falou:
        - E você não precisa explicar nada de novo. Mesmo que você fosse mudo, você sabe que toda mulher sabe quando existe ou não o sentimento.
        Luca sempre esquecia que em Greenfar a intuição feminina era algo tão presente que era quase possível tocá-la.
        - Eu entendo tudo isso, Sarah. Fred também tentou me convencer do contrário, mas ele percebeu que é algo que eu preciso tentar com ou sem a ajuda de vocês. Você topa?
        - Topar o que? Você já falou de passagem, livreto, lendas, mas não disse em que precisa da minha ajuda.
        - Preciso da sua magia. Preciso que você me ajude a fundir água e fogo sem que eles se anulem.
        Sarah o olhou com espanto.
        - Luca, a cada instante eu acho que você enlouquece mais. Isso pode gerar desequilibrio, fora que nem deve ser permitido a não-magos. E seria preciso também controle de energia.
        - Dessa parte eu me encarrego. Por favor, me ajude! Só vamos tentar, pode ser?
        - Olha, eu vou acreditar que o Fred e a Ayla estão sabendo, está bem?
        Os dois pegaram uma grande vasilha de barro e foram até a beira do riacho, onde acenderam uma fogueira. Luca acreditava que com a ajuda de Sarah, a fusão seria simples, mas ele se enganou.
        - Luca, se você não estabilizar a energia dos dois elementos será impossível! De que adianta eu unir a água e o fogo, se você não consegue manter a energia deles em equilibrio?
        O dia já havia nascido e Sarah já estava entediada de erguer o fogo com uma mão, erguer a água com a outra, uní-los sobre a vasilha e nada funcionar. Luca tentava se concentrar de todas as formas possíveis, mas nada adiantava. Em alguns momentos parecia que funcionaria, mas logo só restava fumaça.
        - Você não acha que é um sinal para desistir, Luca? Não somos Magos para fazer isso.
        Luca então se sentou perto de um tronco e quando Sarah pensou que finalmente ele desistiria dessa loucura, percebeu a dor que esse fracasso trazia para ele. Talvez não estivesse funcionando não por ele, mas pela descrença dela. A jovem sentou-se ao seu lado, trouxe a vasilha para a frente dos dois e ergueu um pouco de água na altura dos olhos.
        - Vamos com calma, está bem? Tente estabilizar somente a água.
        Luca olhou para a esfera de água na sua frente, mas para ele o fracasso era tão concreto que só restava a serenidade do conformismo. Até que a esfera parou de se mover e ficou completamente estática flutuando. Com um movimento muito sutil, Sarah ergueu uma chama de fogo ao lado da esfera de água. A crepitação quase tirou a concentração de Luca e ele hesitou em estabilizar o fogo, com receio que o avanço com a água se perdesse. Após alguns instantes, o jovem fechou os olhos e não mais ouviu o crepitar do fogo. Se esse era um sinal de que ele havia estabilizado o fogo e a água, Sarah agora deveria unir os dois elementos em um só. Então ela sussurou:
        - Luca...olhe.
        Ao abrir os olhos, o rapaz ficou imóvel quase sem respirar observando o espelho líquido que havia se formado dentro da vasilha. Era exatamente igual a "tela"que ele havia visto na rua, no dia em que chegou a Greenfar, só que sem brilho, opaca. Aquela era a porta da passagem, agora ele precisava da chave.      

domingo, 12 de agosto de 2012

Capítulo 7 - Códigos decifrados

        Luca já estava há horas na casa de Ayla decifrando o livreto de Hadel e fazendo inúmeras anotações sobre o que era possível desvendar após Smarilion o ajudar com a ilusão que tornava o livreto legível. Quando terminou, percebeu a ausência de Fred.
        - Ayla, terminei. Pelo menos o que eu consegui entender sozinho, mas preciso da ajuda de Fred, onde ele está?
        Enquanto terminava de limpar alguns panos sujos de sangue da extração bem sucedida de um pré-molar, a senhora respondeu:
        - Voltou para casa para preparar algo para vocês comerem a noite, você não o ouviu quando ele o avisou?
        Antes que pudesse perguntar o que ele descobriu com a análise, Ayla ouviu a porta se fechar. Luca já havia saído para falar com Fred. No caminho, o jovem percebeu que havia esquecido completamente da troca com as aldeias de cima, e que havia dito a Oli que acompanharia os homens. Mudou seu rumo para a casa dos Trinid e encontrou com Sarah no meio do caminho carregando uma cesta de frutas que havia acabado de colher no bosque.
        - Sarah! Onde está seu pai?
        - Os homens ainda não voltaram das aldeias de cima. Você deveria ter ido com eles, não?
        - É, mas tive outras...hum...tarefas importantes para fazer.
        - Apesar da algazarra que Alis causou de manhã, percebi que você estava ansioso com algo.
         Ele percebeu que a jovem logo o perguntaria o que estava acontecendo e apesar de confiar nela, não deveria contar.
        - Por favor, peça desculpas a seu pai por eu não ter ido, está bem? Obrigado!
        E deixou a moça o olhando intrigada enquanto ele corria na direção de casa.


        A sopa já estava colocada na mesa quando Luca entrou em casa carregando um monte de papéis com anotações e desenhos. Fred observou pacientemente enquanto Luca distribuia tudo pela mesa, ignorando a tigela de sopa quente que Fred havia colocado para ele.
        - 93 folhas usadas, 14 folhas em branco, 581 tentativas diferentes, incluindo variações de um ingrediente ou outro, 19 símbolos que eu nunca vi, uma página arrancada...
        Fred o interrompeu serenamente:
        - Acalme-se, meu filho. Entendo sua pressa em resolver isso, mas vamos do começo.
        As mãos enrrugadas do senhor pegaram o livreto e ele indicou um grande rabisco que havia na parte de trás do objeto.
        - O que era isso?
        - Um símbolo que eu não conheço, o desenhei em algum lugar...aqui.
        Luca mostrou um papel com um símbolo simples composto por quatro linhas. A primeira era horizontal, com duas pequenas curvas acentuadas. Da ponta das duas curvas, duas linhas retas desciam na vertical e a quarta linha era uma reta, paralela a linha curva, mas tocando a ponta das duas linhas verticais.
        - É o símbolo do Povo do Gelo, Luca. Veja, é a ponta de uma geleira. Esse livreto veio de lá, o que me deixa bastante surpreso já que eles ficam foram da Grande Ilha de Greenfar. Hadel viajou muito para encontrá-los. Eu mesmo só fui uma vez até essa região, já que seu acesso não é fácil. Além disso, eles possuem costumes muito diferentes dos nossos. Dizem que, por estar mais ao Norte, é o povo mais próximo dos deuses. Sua crença neles é muito forte, mas diferente de nós, poucas pessoas dominam magia.
        - Faz muito sentido isso! Se eles acreditam tanto nos deuses devem estar mais ligados às lendas antigas, como diz no texto atrás da capa. É a única inscrição não manuscrita e sim gravada com algum material que eu não identifiquei.
        Luca pegou outra folha e mostrou para Fred a cópia de mais uma parte rabiscada do livreto:

        "Somos aqueles que Os respeitam
         Somos aqueles que Os veneram
         Somos aqueles que Os temem
         Somos aqueles que Os agradecem
         Devemos a Eles a piedade da cisão
         E a gratidão por tudo o que nos cerca"

        Fred continuou observando o livreto, passou os dedos pelas folhas em branco e aproximou o objeto de seu nariz. Luca o olhava curiosamente.
        - É feito de um tipo de folha muito comum, praticamente encontrada em qualquer lugar, mas algo na sua confecção não me parece comum. Deve ser alguma técnica do Povo do Gelo que desconheço. Mais alguma outra anotação sobre a origem do livreto?
        - Mais nada. E acho que a origem do livreto é o de menos. Existem anotações de diversos lugares. Nunca agradeci tanto seu esforço em me dar aulas sobre Greenfar quando cheguei.
        Luca olhou Fred com cumplicidade e mostrou uma lista de nomes de regiões e povos que ele havia encontrado nas anotações de Hadel, junto com trechos de cantigas, lendas e histórias que faziam referência a divisão dos mundos. Fred ficou muito espantado.
        - Estou impressionado que essa história seja encontrada em lugares tão diferentes e de maneiras tão distintas.
        - Mais impressionante do que isso é a quantidade de itens que ele usou nas tentativas. Eu não conheço nem metade de tudo o que ele utilizou tentando abrir uma passagem. A cada nova pista encontrada, ele interpretava todos os significados que pudesse ter e buscava o que se encaixasse. É doentio.
        Fred se surpreendia cada vez mais com tudo o que lia.
        - Luca, você sabe o que é uma Imperatriz do Deserto?
        - Não faço ideia do que é. Só sei que ele a cortou em 3 partes para poder utilizar mais de uma vez.
        - Filho, essa é uma flor rara, eu diria mitológica. Se ele conseguiu encontrar uma e ainda a partiu em 3 partes fico realmente preocupado com o que ele pode estar fazendo hoje. Se foi com isso que ele abriu a passagem, será impossível encontrarmos...
        - Essa é a melhor parte, Fred! As últimas anotações vieram depois desse trecho:

"Não se deve jamais tentar separar o que os deuses uniram, 
Assim como também não se deve unir aquilo que os deuses separaram
é como desejar a morte e o desequilibrio do todo
Isso só pode ser feito fundindo opostos de forma que se somem e não se anulem
E com um elemento que naturalmente possua uma parte de cada um dos lados"

        - São só dois elementos, Fred! Os opostos e um que possua uma parte de cada lado. - disse Luca muito animado.
        - E as três primeiras frases você resolveu ignorar, não é mesmo?
        Luca o olhou com reprovação e Fred suspirou com pesar. Os riscos dessa busca já estavam claros desde o começo, embora Fred, em seu íntimo, sempre se questionasse sobre continuar ou não. Luca ignorou o comentário de Fred e prosseguiu:
        - Depois de muitas fusões, ele passou a usar somente água e fogo. E assim foi até a última anotação.
        - E o que ele usou como segundo elemento, o que possui uma parte de cada lado?
        - Ele tentou muitas coisas que talvez tivessem ligação com os dois mundos, mas ele não anotou o que usou por último. É uma frase incompleta. Talvez ele tenha anotado na página que arrancou, mas isso não importa porque EU sou um elemento dos dois mundos. Vivi lá e agora vivo aqui. Precisamos tentar o quanto antes!
        Fred percebeu que Luca estava caminhando no seu objetivo de abrir uma passagem para o mundo lógico e sentiu um frio na espinha. Ele tentou pensar em algo que pudesse impedí-lo de continuar, mas não havia mais volta, ainda mais com o livreto desvendado. E principalmente com Luca achando que ele era a chave para a passagem ser aberta.
        - Luca, posso te fazer um pedido?
        - Claro, Fred.
        - Podemos deixar isso para amanhã? Tome sua sopa e descanse. Por favor.
        Não havia porque deixar para o dia seguinte, mas Luca sabia que Fred precisava de um tempo para digerir os acontecimentos e as descobertas. Valia a pena controlar a ansiedade por Fred.
        - Está bem, amanhã cedo começo.
        E bebeu com gosto a sopa fria.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Capítulo 6 - Ponta Fadada

        - Venha, Ragi, vamos logo. Estamos chegando em casa, não é ótimo?
        O pequeno javali ruivo soltou um grunhido nada agradável para o homem que se dirigia a ele com sarcasmo enquanto subiam uma colina íngrime coberta por grama queimada. O vento no sentido contrário os impedia de ir mais rápido e as vestes da figura esquálida que andava ao lado do animal balançavam furiosamente. Ao avistar o pequeno casebre quase na beira da falésia, o rosto do homem pálido e de aparência frágil se iluminou em um sorriso macabro.
       - Olhe, Ragi, o solitário Baobá continua escondendo nosso lar. Espero que não tenham nos furtado.
       Ele se referia a grande árvore de tronco largo que ficava entre a casa e o abismo, a protegendo de não ser varrida pelos ventos da região. O local se chamava Ponta Fadada e era completamente desabitado. Devido as condições climáticas e à fragilidade do terreno das falésias na beira do mar, o lugar a qualquer momento poderia desmoronar. Hadel o julgava o lugar perfeito para não ser incomodado.
        Após empurrar com dificuldade a porta emperrada, Hadel e seu javali enfim conseguiram entrar no único lugar que o vento não alcançava. O sibilar fantasmagórico do vento que rangia as janelas trancadas com antigas fechaduras enebriava o homem que olhava fascinado para a casa intocada.
        - A poeira não me incomoda. O que importa é que agora poderemos começar de novo, Ragi. E dessa vez sem erros.
        Hadel colocou alguns gravetos largados no chão na lareira e com um suave movimento da mão direita fez o fogo acender. Sentou-se na grande cadeira de madeira próxima ao calor, enquanto o animal se sentava ao seu lado e ele acariciava sua cabeça.
        Sete eras haviam se passado desde que eles deixaram aquele lugar. Era muito arriscado ficar ali após finalmente abrir uma passagem para o mundo lógico. A energia da passagem era muito forte e diferente de tudo que havia em Greenfar, além de demorar muito tempo para se dissipar. A qualquer momento um Mago ou  alguém com mais sensibilidade energética poderia perceber e importunar. Ficar não seria sensato, mas também havia outro motivo para partir. Ele precisava buscar algo que havia perdido.
        - Estou muito surpreso que ninguém tenha vindo por aqui durante tanto tempo.O que me alegra, é claro, porque tenho certeza de que estamos seguros e sozinhos. Tudo será feito com muita calma e paciência. Não desejo esperar mais um ciclo de eras para atingir meus objetivos. Já está mais do que na hora de beber do conhecimento lógico, não é querido Ragi?
        Mais uma vez o javali grunhiu como se estivesse insatisfeito.
        - Entenderei como um ruído de carinho, seu animal idiota.
        O homem parou de acariciar o mascote e seu olhar passeou pelo ambiente sem cor. Ele se fixou na cama ainda desarrumada com um pano caído no chão e se lembrou da última pessoa que havia deitado ali.
        - Garoto maldito...e eu que acreditei que ele poderia ser a minha fonte, que com ele eu me tornaria o Ser Supremo...três dias aguentando aqueles gemidos, tentando arrancar uma mísera informação, uma gota qualquer de conhecimento...e quando ele finalmente resolve parar com aquele mentira de dores na cabeça sem fim, ele se revolta, sem nem me dar uma pequena chance de mostrar pra ele o quanto ele poderia...me ser útil.
        Hadel se virou para o javali ao seu lado. Segurou seu pescoço com força e disse com raiva:
        - E você, seu inútil, precisava ter ficado na minha frente na hora que ele saiu correndo com meu livreto? Animal burro! Se eu não tivesse tropeçado em você talvez ele não tivesse caído no mar com o elemento mais precioso que eu tinha!
        O javali soltou um ganido fino de dor e se recolheu próximo a parede quando Hadel o soltou. Após o acesso de ódio, o homem voltou a se recostar calmamente na cadeira. Com uma mudança de humor drástica, seu tom de voz agora era de satisfação.
        - Mas agora já está tudo bem, Ragi. Tudo o que estava no livreto ficou na minha mente, já conseguimos o mais importante que aquele menino levou com ele para a morte, o ciclo de eras se encerrou e poderemos começar de novo. Venha para perto do fogo, meu querido, venha.
        O javali com olhar assustado se aproximou lentamente da mão que novamente o acariciava.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Capítulo 5 - Ilusões

        Ayla andou com uma calma atípica até a porta e a fechou logo após Luca sair. Ela esperou ele se afastar e se virou para Fred com um olhar distante. Nenhuma palavra se fazia necessária naquele ambiente silencioso, mas ainda assim a curandeira olhava para Fred como se esperasse uma resposta para uma pergunta que não precisava ser dita.
        - Eu nunca falei nada para ele. Não sei de onde ele tirou aquela frase.
        - Eu sei de onde ele tirou. O Luca está ficando igualzinho a você, e isso me preocupa.
        - Essa deveria ser a última das suas preocupações agora, Ayla. Ele vai tentar abrir uma passagem com a nossa ajuda ou sem. Não é melhor que pelo menos saibamos o que ele está fazendo?
        Memórias invadiram o pensamento de Ayla e o silêncio, nada habitual naquela casa, reinou. Ela não queria concordar com o que Fred dizia. Era errado, arriscado e sem a menor garantia de sucesso, mas ela sabia que se o contrariasse ele ajudaria Luca de qualquer maneira. Esse era o Fred que ela tão bem conhecia. A melhor forma de evitar mais problemas era se envolvendo naquela loucura.
        - Fred... - Ayla deu um longo suspiro antes de continuar - o que vamos fazer?
        Fred se aproximou de Ayla, pegou suas mãos e disse docemente:
        - Precisamos ajudá-lo a encontrar um sentido para ele ficar aqui. Da mesma forma que durante toda a minha vida eu sempre tive um motivo para um dia voltar.
        A energia voltou ao rosto de Ayla e ele soltou as mãos de Fred levantando-se rapidamente indo em direção ao chá que havia começado a preparar quando Fred e Luca chegaram.
        - Por favor, chame Luca. Precisamos ter uma bela conversa com esse rapaizinho antes que ele se atreva a mexer com magia por aí.

                                                                              ***

        Em pouco tempo os três estavam novamente reunidos na pequena saleta da casa de Ayla, tomando o chá de jasmin das flores que a curandeira cultivava e observando, ao centro da mesa, o livreto de Hadel. Era um pequeno caderno com folhas muito finas, quase translúcidas e anotações e rabiscos praticamente indecifráveis. Pouco do que estava anotado ali era compreensível. Por vezes eles viravam o livreto em diversas direções para tentar encontrar um sentido para os garranchos do autor.
        - Não existe uma ordem, tudo foi escrito de maneira aleatória. Como é possível alguém guardar algo tão importante desse jeito? - Ayla estava inconformada com a bagunça.
        - É preciso existir um ponto de partida nessa confusão - disse Fred enquanto analisava uma parte que mais parecia um diário cheio de frases de ódio aos Magos da Natureza.
        - Será que ele precisou da ajuda de um Mago da Natureza para abrir a passagem? - perguntou Luca com inocência.
        - Isso jamais aconteceria. Os Magos da Natureza são também responsáveis pelo equilibrio da energia de Greenfar e isso iria totalmente contra seus princípios.
        - Mas só os Magos dominam magia e energia, e com isso eles poderiam abrir uma passagem facilmente, não?
        Fred se adiantou para responder a Luca:
        - Sim, mas esse definitivamente não seria um Mago de verdade.
        Antes que pudessem voltar a analisar o livreto alguém bateu a porta da casa de Ayla.
        - Oh céus! Me esqueci completamente da vinda de Smarilon. Precisamos arrancar um dente de um menino rebelde.
        Após abrir a porta Ayla deu um longo abraço no homem alto que havia chegado. Suas roupas brancas contrastavam com seu tom moreno de pele e ele parecia muito feliz em vê-la. Smarilion era um Ilusionista, um dom raro e perigoso de se encontrar. Eles tinham o poder de colocar imagens na mente das pessoas, podendo as levar a loucura. Havia dois caminhos para os Ilusionistas: ou escondiam seu dom ou trabalhavam com os curandeiros em casos mais difíceis. Eram como os anestesistas de Greenfar.
        - Minha querida Ayla, como é bom revê-la!
        - Te digo o mesmo, Smarilion. Se recorda de Fred e Luca?
        - É claro, como vão os dois?
        Ao ir em direção aos dois para cumprimentá-los, as anotações do livreto chamaram a atenção do visitante e ele disse em tom irônico:
        - Tem chamado outro ilusionista para ajudá-la, Ayla?
        Os três olharam para Smarilion com curiosidade e a senhora o indagou o porquê dessa pergunta.
        - Anotações como essa só podem ser feitas por ilusionistas. Somos péssimos colocando coisas em ordem, então sempre que tentamos é algo "assim". Geralmente só nós conseguimos decifrar, por misturar a realidade no papel com ilusões que montamos.
        A declaração fazia muito sentido para Luca. Apesar de ser um ilusionista, Hadel não pode usar seu dom com Luca. Embaralhar sua cabeça poderia fazê-lo perder as lembranças do mundo lógico, que é o que interessava a Hadel.
        - Smarilion, como podemos "ler"o que está escrito aqui? - perguntou Luca ansioso.
        O homem pegou o livreto, girou algumas vezes e por fim declarou:
        - Só preciso colocar uma ilusão simples em sua mente e você conseguirá enxergar o que está escrito com clareza.
        Percebendo a ansiedade de Luca, Ayla se adiantou:
        - Mas antes, o dente!
        E a curandeira saiu puxando Smarilion, deixando Fred, Luca e uma grande esperança no ar.
      

domingo, 24 de junho de 2012

Capítulo 4 - A história se repete

         O Povo das Rochas era assim chamado por viver ao pé dos penhascos rochosos da costa oeste da Grande Ilha de Greenfar. A pequena aldeia de Fred era a mais ao Sul da região e por isso, além de levar seus mantimentos típicos para a troca com outras aldeias, também levavam notícias do interior da Grande Ilha , já que eram os primeiros a recebê-las.
         Apesar da localização privilegiada, a vida era muito simples, assim como seus moradores, que viviam com o que o conseguiam com as outras aldeias e com o que a terra, o bosque e o rio oferecim. Ao andar por entre as casas, Luca ainda se lembrava das primeiras impressões que teve quando chegou, procurando um mercado, carros ou postes de luz e também do fascínio pela maneira diferente como tudo acontecia naquele lugar.
         Não havia energia elétrica ou barulhos como buzinas e televisões mal sintonizadas. Os sons vinham da natureza, da água correndo, das folhas se movendo com o vento ou vasos de barro sendo colocados sobre mesas de madeira. As pessoas moviam objetos com pequenos gestos, faziam a colheita nascer em um tempo inacreditável e era possível curar ferimentos só com o toque. Essa última tarefa não era tão simples, por isso toda aldeia precisava ter um curandeiro, alguém com uma notável habilidade de mover a energia dos corpos. E por isso Luca estava vivo hoje, graças às habilidades de Ayla. 
         Não se sabe se foi pelo grande esforço que Ayla fez para o salvar ou pela passagem para Greenfar, mas pouco tempo depois que chegou a aldeia Luca começou a perceber a energia de forma diferente. Era como se tudo em seu entorno o tocasse, mesmo que estivesse distante. Ayla logo percebeu e começou a ensiná-lo a ter controle dessa sensação e também a mover a energia. Sua percepção energética aumentou muito ao longo dos anos – ele já conseguia sentir a energia de animais que estivessem além da entrada do bosque - , mas mover a energia mesmo que de uma flor a outra ainda parecia quase impossível. Sempre que Luca pensava em desistir Ayla dizia: “Você acha que é com nossa magia que fazemos as flores crescerem? É quando acreditamos que se torna possível.” Ela sabia o que dizia.
         Enquanto caminhavam em direção a casa da curandeira, Fred e Luca foram interrompidos bruscamente por pequenas mãozinhas que puxaram suas roupas gritando com euforia:
         - Fledi!! Luca! Venham ver minha dança para a festa das estações? Venham, venham!!
         A garotinha não parou de falar enquanto os puxava para dentro da casa, até que os dois pararam na soleira da porta e Fred disse olhando para o interior:
         - Podemos entrar e ver o show dessa pequenina?
         A mesa estava pronta para a refeição da manhã, enquanto a família dos Trinid se preparava para sentar. O pai, Oli Trinid, se levantou rapidamente e se dirigiu a Fred com certa cerimônia:
         - Fred! Perdoe nossa pequena Alis, espero que elas não os tenha importunado. Nem percebi quando saiu... 
         - Sim, Oli tem razão, Fred! – disse sua esposa enquanto virava-se para a pequena Alis com o intuito de repreendê-la da travessura, mas antes que pudesse dar uma bronca, Fred disse gentilmente para todos sem deixar de dar uma piscadela para a garotinha:
         - Não foi incômodo, eu e Luca estamos ansiosos por ver a dança de Alis.
         A menina então correu para sentá-los na mesa, enquanto suas irmãs chegavam e cumprimentavam com muito respeito Fred e com jovialidade Luca, com exceção de Sarah, a irmã mais velha, que ficou bastante desconcertada ao se deparar com o jovem na mesa de refeição naquela hora e mal conseguiu cumprimentá-lo.
         - A refeição está pronta. Fred e Luca, fiquem a vontade para comer conosco – disse muito gentilmente Tela Trinid, a mãe das 4 meninas que já se serviam na farta mesa. Luca gostava da presença de Tela, seu jeito o lembrava de sua mãe.
         Após a apresentação de Alis, que foi muito aplaudida por todos, Fred pediu licença para que ele e Luca se retirassem. Havia um assunto para ser tratado com Ayla e por mais que Fred quisesse adiar, ele sabia que não seria possível.  Se despediram de todos em meio aos gritinhos histéricos de agradecimento de Alis. Após cruzarem a porta, Oli os seguiu e perguntou:
         - Luca, a ida nas aldeias de cima será hoje, você vem conosco?
         - Claro, contem comigo!
         Luca não sabia como seria a conversa com Ayla, mas não queria dar explicações de possíveis porquês o levariam a não ir com os homens nas trocas entre aldeias. E continuaram em direção a casa florida.
         Ao chegarem nos degraus da casa a porta se abriu e uma senhora surgiu. Apesar de ter quase a mesma idade de Fred, Ayla possuia um olhos azuis muito juvenis e uma maneira muito menos cerimoniosa. Tipicamente, os curandeiros eram pessoas muito sábias, serenas e pacientes. Para Ayla se aplicava somente a parte da sabedoria. Ela poderia ser mais agitada que uma criança e esse era um dos motivos pelos quais a conversa com ela era preocupante, ainda mais sobre um tema tão delicado.
         - Sinto uma energia tensa vinda dos dois, então me contem logo o que está acontecendo. – e foi para pegar chá para os três sem que ninguém solicitasse. Fred e Luca se entreolharam questionando-se quem deveria iniciar a conversa. Os dois conselheiros se conheciam desde a infância e apesar de ficarem muitos anos sem se ver após Fred sair da aldeia ainda mantinham a intimidade de velhos amigos. Talvez por conhecer bem o jeito explosivo de Ayla, Fred tenha iniciado o assunto:
         - Ayla...é chegada novamente a Era de Terra Acima. Luca quer tentar abrir uma passagem para o mundo lógico.
         Como era esperado, após 2 segundos de profundo silêncio, Ayla se manifestou um tanto quanto exaltada:
         - Qual dos dois perdeu o juízo? Me digam agora, assim já sei por qual começo a explicar pela milésima vez o quanto isso é arriscado!
         Luca esboçou uma resposta, mas Fred bateu em seu ombro como sinal para que ele nem tentasse. Ele sabia que qualquer argumentação só teria efeito depois que Ayla pudesse canalizar toda sua energia para fora. E ela continuou:
         - Vocês sabem ou pelo menos conseguem imaginar os riscos que isso pode trazer para a aldeia e para toda Greenfar? Ainda mais sendo realizada por alguém com tão pouca experiência em magia como você, Luca! Esperem! Vocês não estão pensando em usar o maldito livreto, não é? Porque já seria loucura demais tentar fazer isso, ainda mais usando as “instruções” daquele lunático!
Ayla andava de um lado para o outro na sala completamente inconformada. Oscilando entre sussuros e rompantes de exclamações para os dois. Quando viu uma oportunidade para falar, Luca disse:
         - Ayla, eu só tenho essa chance para tentar, é importante.
         A senhora parou de frente para os dois e colocou as mão sobre o rosto. Seu tom agora era de desabafo.
         - Fred, diga para ele, não acredito que você esteja sendo conivente com isso. Luca...Fred...vocês não fazem ideia do que eu tive que fazer para salvá-lo. Eu não sei se consigo fazer de novo, vocês entendem? Luca, você vai colocar sua vida em risco!
         - Ayla, eu não consigo te dizer o quanto sou grato por tudo que você já fez por mim, e o Fred também, é claro, mas eu prefiro arriscar a minha vida nisso do que viver uma vida pela metade.
         Ao ouvir essa frase o semblante de Ayla mudou e toda a agitação foi embora subitamente. Ela se lembrava claramente do dia em que ouvira essa frase pela primeira vez. O unico dia em que não conseguiu convencer alguém a seguir seus conselhos.
         - Luca, por favor, saia. Preciso conversar com Fred em particular.
         Luca saiu da casa confuso. Nunca havia visto Ayla tão abalada.  

domingo, 13 de maio de 2012

Capítulo 3 - Perguntas e Respostas


Luca acordou no meio da noite respirando intensamente. Olhou para os dois lados da cama e percebeu que foi apenas um sonho. O mesmo sonho das últimas noites: o conhecido javali com pelo avermelhado sendo acariciado na cabeça pela mão de dedos longos e pálidos. Levantou-se, prendeu os longos cabelos e saiu pela porta de trás da casa em direção ao bosque.
A água corria no seu ritmo habitual no riacho que beirava o bosque e o separava das casas da aldeia do Povo das Rochas. Luca sentou-se nas raízes de uma grande árvore, que pelo peso do tempo e dos galhos de sua copa, se curvava sobre o rio formando a sombra de uma ponte sobre a água. O menino agora era um jovem de quase 20 anos e embora não fosse alto como sonhou ser quando criança, suas preocupações agora eram bem diferentes do que na época em que brincava na Rua Cachoeira.
Como seria sua vida se não tivesse ido para Greenfar? Se não tivesse tocado a passagem e simplesmente tivesse continuado seu caminho para casa com Solk? Como estariam sua família, os amigos? As memórias dessa época ficavam cada vez mais distantes. Será que Hadel teria aberto outra passagem para a Terra, ou mundo lógico como todos a chamavam? Teria ele trazido mais alguém de lá e feito prisioneiro, como tentou com Luca? De todas as dúvidas que vagavam por sua mente havia uma que era maior que todas as outras: seria possível voltar?
Antes que pudesse concluir seu pensamento, Luca ouviu passos leves se aproximando e sabia a quem pertenciam.
- Acredito que mesmo que eu fosse um Mago da Natureza e pudesse voar como uma borboleta você ouviria se eu me levantasse da cama, não? – disse Luca ainda olhando fixamente para a curva do riacho enquanto Fred se sentava com certa dificuldade ao seu lado.
- O javali de Hadel de novo, não? – não era necessária uma resposta de Luca para que Fred soubesse o que estava acontecendo.
- Todo o meu conhecimento de uma vida inteira viajando por Greenfar são insuficientes para sanar suas dúvidas, meu filho. Queria ter suas respostas, mas não possuo. O máximo que consigo é tentar fazê-lo feliz aqui.
- Eu não tenho dúvidas disso, Fred. Você sabe que te devo a minha vida e eu sou feliz aqui, mas é difícil não pensar no que teria acontecido... – Luca preferiu o silêncio a terminar a frase que Fred já tinha escutado tantas vezes desde o dia em que ele o encontrou fraco e doente no bosque, após sua fuga de Hadel.
Fred já tinha quase 9 eras de idade, o que pode ser comparado a quase 70 anos. Quando era jovem percebeu que não tinha habilidades com magia como seus amigos, então decidiu sair da aldeia e conhecer o mundo. Passou a vida viajando, conhecendo lugares, pessoas e lendas. Sua coragem se transformou em conhecimento, mas um dia percebeu que as pernas já não conseguiam carregar tudo o que aprendera, então decidiu voltar para casa com o objetivo de passar tudo o que viu para os mais jovens.
Foi recebido na aldeia do Povo das Rochas com muita festa e alegria, sendo rapidamente reconhecido e respeitado. Foi nomeado um dos conselheiros da aldeia, junto com Ayla, a Curandeira, e Ortiz, o Shamã.
Quebrando o silencio que havia se estabelecido, Luca disse um pouco vacilante:
- Fred, vamos entrar novamente na Era da Terra Acima. Pensei em tentar usar o livreto de Hadel. – apesar da serenidade característica de Fred, ele tinha receio em saber qual seria a sua reação quando dissesse isso.
Quando fugiu, Luca trouxe o livreto de Hadel, com todas as anotações que ele fizera enquanto tentava abrir uma passagem para o mundo lógico. Eles já haviam analisado tudo o que havia nele, mas não era simples. A mente de Hadel era confusa, assim como suas anotações. Uma das poucas conclusões a que conseguiram chegar era a necessidade de se fechar o ciclo das 7 eras para se abrir a passagem.
Fred segurou a respiração por alguns segundos. Ele sabia que enquanto o ciclo das eras não se encerrasse o assunto não seria um problema, mas havia chegado a hora que ele mais temia.
- Luca, não sei se você deve...é arriscado. Além disso, você realmente quer voltar? – sua pergunta tinha mais por trás do que as palavras podiam expressar. Fred tinha Luca como um filho. Percebendo que poderia ter ferido os sentimentos de Fred, Luca logo corrigiu.
- Eu preciso de respostas, esclarecimentos...qualquer coisa, Fred. Não consigo ter uma vida plena, aqui ou em qualquer lugar com tantas perguntas sem resposta.
Um turbilhão de sentimentos tomou conta de Fred. Ele não queria perder Luca, mas sabia que ele só seria realmente feliz se pudesse entender melhor o que aconteceu e talvez, tendo suas respostas, ele escolheria ficar em Greenfar. Era um risco muito alto, mas necessário. E ele não deixaria Luca fazer isso sozinho.
Com um longo suspiro, Fred disse:
- Está bem. Vou ajudá-lo, mas precisaremos avisar Ayla. E não será fácil convencê-la.
Luca sabia que convencer Ayla seria talvez tão complicado quanto abrir uma passagem, mas o apoio de Fred o deixava muito confiante. Continuaram sentados na beira do riacho, aguardando o sol nascer por completo para irem até a casa de Ayla.

sábado, 12 de maio de 2012

Capítulo 2 - Ano 1998 / Era Terra Acima


- Segunda vez essa semana que eles me enchem o saco... – disse cabisbaixo o menino magrelo de cabelos pretos enquanto caminhava ao lado do amigo de volta para casa. Solk deu uma risada breve e alegre passando o braço comprido pelo ombro do amigo. Apesar de ter apenas dois anos a mais do que o amigo que acabara de completar 12 anos, Solk já possuía o porte físico de um rapaz mais velho, porém muito desengonçado com as novas dimensões.
                - Relaxa, Luca, enquanto eles acreditarem que eu sou muito mais velho eles não vão te perturbar mais. Luca sorriu e se lembrou da coragem do amigo ao se colocar entre ele e os meninos da rua de cima bradando para que não mexessem mais com ele, os fazendo correr apavorados.
- Espero que isso tenha efeito quando eu não tiver a sorte de você aparecer. - O desapontamento em sua voz era perceptível. Tentando mudar de assunto Solk falou:
- Vamos jogar vídeo game depois do almoço? – com um sorriso que fazia as meninas do colégio suspirarem, mas que o amigo de tantos anos já sabia que era uma tentativa de reanimá-lo.
Luca concordou e continuaram andando até chegarem a Rua Cachoeira, com suas pequenas casas coloridas, a calçada irregular e as árvores baixas que cresceram junto com os dois meninos. Ao cruzarem o primeiro poste começaram uma corrida rotineira para ver quem chegava antes ao último poste, mas antes que chegassem à metade do caminho Solk parou e puxou o amigo pelo braço, que quase caiu por parar bruscamente. Luca achou que o amigo estava tentando trapacear, mas Solk não estava mais correndo e olhava curiosamente para o outro lado da rua.
- Que luz é aquela?! – disse Solk intrigado. Luca se virou na direção que o amigo olhava e também notou algo anormal. Era uma luz muito brilhante que flutuava perto de uma árvore frondosa. Apesar da sombra da árvore, a luz ainda era muito forte.
Os dois se olharam como se hesitassem em ir até a estranha luminosidade que emanava do nada, mas a curiosidade dos meninos era maior. Foram andando muito vagarosamente na direção do brilho flutuante.
-Parece...um espelho. – gaguejou Solk enquanto examinava a superfície brilhante suspensa na sua frente.
Luca também observava curiosamente. Apesar de parecer um espelho, a tela brilhante não refletia a imagem dos meninos.
- Solk, se fosse um espelho apareceríamos nele... – disse enquanto se inclinava para olhar melhor dentro da tela, se aproximando mais do que deveria. Solk percebeu que Luca estava quase entrando em contato com “aquilo” e fez um movimento para afastar o amigo, mas foi tarde demais. Luca tocou a tela e Solk sentiu que o ombro do seu amigo sumiu do contato com a sua mão. Ele olhou para a tela e viu Luca dentro do “espelho” olhando assustado para fora.
- Luca! Você precisa voltar! – disse desesperadamente, mas antes que terminasse a frase, a luz se apagou e a tela sumiu. Solk agora estava sozinho na rua.

Capítulo 1 - Antiguidade

O mundo como o conhecemos hoje surgiu de uma grande explosão causada pelos deuses que, interessados em saber o que seria gerado a partir do caos, resolveram assistir passivamente o que ocorreria. Através de evoluções, a natureza e todos os seres que hoje habitam no mundo surgiram a partir das necessidades e das adaptações que ocorreram ao longo de milhões de anos.
  Até que surgiu o Homem, um ser extremamente evoluído, capaz de equilibrar toda a energia que circulava no mundo e com uma excepcional capacidade de pensamento lógico. Com grande potencial, o Homem estava descobrindo os primeiros usos da magia, a utilização da matéria natural para a construção de instrumentos e tentando controlar a natureza, mas com o tempo, eles perceberam que controlando a magia, a razão e a natureza, eles dominariam qualquer outro ser e isso começou a preocupar os deuses.
O Homem nomeou-se "Ser Supremo" e então os deuses começaram a discutir se deveriam interferir pela primeira vez naquela experiência, já que ficavam cada vez mais claras as más intenções de alguns indivíduos.
Os deuses decidiram intervir e os procuraram, com a intenção de orientá-los sobre o uso correto do seu potencial para que eles não destruíssem uns aos outros, mas já era tarde. Os Homens não conheciam os deuses, idolatravam a si mesmos, então os receberam com desdém e riram do que lhes foi dito. Sentindo-se mais poderosos do que qualquer outro ser, expulsaram os deuses, sem se dar conta do erro que cometiam.      
           Os deuses então decidiram que tanto poder era um grande risco, então tirariam algum dos potenciais dos Homens. Para provar seu poder, enviaram grandes catástrofes e um recado: os homens deveriam escolher se manteriam seu potencial lógico, que proporcionaria o domínio da razão e do que ela é capaz de construir, ou seu potencial mágico, que os tornaria capazes de dominar a energia da mente e da natureza.
Os homens começaram a discutir qual seria a escolha e essa discussão se tornou uma grande guerra que quase dizimou a Humanidade. Ao perceberem que esse conflito levaria ao seu fim, os homens decidiram implorar aos deuses que cada grupo mantivesse o potencial que desejava. Os deuses também não queriam aquele conflito, mas sabiam que os dois potenciais não poderiam coexistir, então aceitaram a proposta dos homens, com a condição que os dois grupos se separassem para sempre e nunca mais tivessem contato um com o outro. Dessa forma, os deuses criaram o mundo lógico e o mundo mágico.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012