terça-feira, 28 de agosto de 2012

Capítulo 9 - Do céu ao inferno

        - Ragi, meu querido, você pode parar de grunhir? Ficarei imensamente agradecido e o recompensarei assim que abrir nossa passagem para o mundo lógico.
       Ainda com um sorriso irônico no rosto, Hadel olhou novamente o calendário circular pendurado na parede que marcava o ciclo das sete Eras de Greenfar, enquanto manuseava a água e o fogo, um em cada mão.
        - É chegada a hora de descobrir as verdades da lógica e dessa vez será perfeito.
        Com um movimento rápido, ele fundiu a água e o fogo, formando uma massa opaca que deslizava de uma mão a outra com leveza. Ele a ergueu com a mão esquerda e a contemplou por alguns instantes. Ele sabia exatamente como deveria agir dessa vez. Pegou um pedaço de papel amassado e o colocou no meio da mistura, que se tornou brilhante. A substância se enrijeceu flutuando como um espelho na frente de Hadel. Seu rosto se iluminou com o triunfo e ele mal conseguia se mover, observando, no interior do espelho, a antiga Rua que ele havia avistado sete Eras atrás. Era preciso cuidado para que nada o atrapalhasse dessa vez enquanto ele observava as imensas construções que existiam do outro lado, algumas estáticas e outras maravilhosamente se movimentando sem nenhuma magia.
        - Venha, Ragi, beba você também dessa fonte.
        O javali não saiu do lugar assustado com o brilho que emanava da passagem. 
        - Temos até o final da Era Terra Acima para observarmos tudo, Ragi, e entender como eles utilizam o poder da lógica. Quando eu conseguir unir a magia e a lógica tudo será diferente. Greenfar entrará em uma nova era. Será extremamente prazeroso ver a queda dos Magos da Natureza quando eles perceberem que não são a maior força que existe com todo seu discurso superior de magia, equilibrio e etc.
        E continuou mergulhado na visão do mundo lógico, enebriado por tudo o que via.

***

        A beira do riacho não era o lugar mais seguro para se abrir uma passagem e Luca sabia que Fred já devia estar procurando por ele. Com todo o cuidado, Luca levou a vasilha com a tela opaca para casa. Sarah insistiu em acompanhá-lo, mas ele sabia que era melhor ninguém saber que ela estava envolvida nisso.
        Fred já estava na porta de casa quando o jovem chegou e sua surpresa em ver o que ele carregava o emudeceu. Eles esvaziaram de forma rude a ponta de uma mesa, colocaram a vasilha em cima e por alguns instantes ficaram observando a matéria fluída que havia se formado com a fusão da água e do fogo.
        O ombro de Luca foi tocado pela mão enrrugada de Fred, que se perguntava como Luca havia conseguido realizar a fusão, mas a fragilidade do conteúdo da vasilha era tanta, que não havia espaço para perguntas. Luca acreditava que ele era a chave que abriria a passagem, por ser um elemento que unia os dois lados, então aproximou sua mão hesitante da superfície opaca e se lembrou da primeira vez que tocou algo semelhante, da sua imprudência, do desespero em que deixou seu amigo Solk. Antes de tocar, ele se virou para Fred e disse:
        - Fred, quero que saiba que você é como um pai para mim. Obrigado por tudo.
        Com os olhos cheios de lágrimas, Fred viu Luca mergulhar a mão na vasilha até o pulso.
        Nada aconteceu.
        Luca colocou a mão repetidas vezes na vasilha, mas o único efeito era sua mão ficar embebida na substância gelatinosa. Ele olhou para Fred decepcionado, procurando alguma resposta.
        - Meu filho, você é uma pessoa, não um elemento. Talvez seja isso.
        Luca saiu correndo e voltou com uma caixa empoeirada. Dentro estavam as roupas que ele usava quando chegou a Greenfar. Dessa vez ele pegou um pedaço da camisa com o desenho desbotado de um Pica Pau risonho e mergulhou na vasilha sem receios. Mais uma vez, nada aconteceu. Depois de diversas tentativas, com todos os itens da caixa, Luca arremessou todas as roupas e a caixa para longe derrubando diversos papéis das prateleiras de Fred.
        Mesmo assustado com a reação do jovem, Fred se aproximou dele com carinho para consolá-lo, mas Luca continuava agressivo e entre lágrimas disse:
        - Me deixa sozinho! Na verdade - disse enquanto se dirigia para o livreto de Hadel caído em um canto - eu preciso encontrar a solução naquilo! No maldito livreto daquele monstro!
        Percebendo o descontrole de Luca, Fred se lançou na frente do jovem para pegar o livreto antes, mas ao se levantar sentiu uma fisgada na coluna. Luca o socorreu e enquanto era ajudado a se sentar em uma cadeira, Fred colocou o livreto sobre a mesa de forma displicente, sem perceber que na verdade o estava jogando na vasilha com a fusão da água e do fogo.
        - Fred, me perdoe, você está bem? Eu não queria agir assim...
        A confusão na cabeça de Luca com o fracasso da passagem e agora percebendo o mal que fez para Fred, o fez abraçá-lo com força.
        - Luca, você conseguiu. - disse Fred enquanto ainda abraçava Luca - veja.
        Atrás de Luca, o conteúdo da vasilha flutuava, iluminado.
        Percebendo o que Fred havia feito com o livreto, Luca disse em euforia:
        - Fred! O livreto era a chave! Por isso Hadel havia arrancado uma folha, foi o que ele usou para abrir a passagem!
        - O Povo do Gelo mantem tradições muito antigas, provavelmente de antes da divisão. O livreto deve ter sido forjado com algum desses costumes.
        Luca se sentou lentamente ao lado de Fred ambos agora hipnotizados pela tela brilhante que mostrava um lugar bem conhecido do jovem.
        Rua Cachoeira. Algumas casas com cores diferentes, os postes de luz também haviam mudado, mas era o mesmo lugar. Um carro passou pela rua e era tão diferente dos que ele conhecia. Seu espírito o dizia para mergulhar naquela tela e ver mais, mas dessa vez ele conhecia os riscos. Logo algo chamou sua atenção. Duas mulheres segurando sacolas de mercado iam na direção da antiga casa de Luca.
        - Minha mãe.
        O olhar de Luca misturava saudade e tristeza. Ela estava bonita, mais velha, cabelos mais curtos. Enquanto elas se aproximavam foi possível ouvir o que elas conversavam.
        - Vamos no shopping amanhã? Preciso comprar a roupa da Carol pra festa da escola.
        - Boa ideia, também não comprei a roupa da Tati. Quero minha filha linda nas fotos.
        Luca ouvia as duas rindo orgulhosas de suas filhas quando murmurou:
        - E agora eu tenho uma irmã...Tati...
        Cada descoberta de tudo o que ele não havia vivido o machucava profundamente, até que outra pessoa apareceu na tela. Era um jovem alto que cruzou com as duas mulheres e as cumprimentou. Ele seguia seu rumo para o outro lado da rua quando parou e olhou como se estivesse vendo a passagem. Ele hesitou, olhou para os dois lados, mas continuou seu caminho. Quando já não era possível vê-lo as duas mulheres continuaram a conversar.
        - Nunca descobriram o que aconteceu com esse menino, não é?
        - Uma pena, mas não. Acho que ele continua tomando medicamentos, mas pelo menos não insiste mais que eu tenho um filho.
        - É normal crianças terem amigos imaginários, mas não como aconteceu com Solk por tantos anos. Até hoje me lembro do dia em que internaram ele, quando ele gritava na sua porta o tal do Luca. Que desespero. Coitada da mãe dele...
        - Agora ele é um jovem começando a vida, bonito, mas a vida com medicamentos não é fácil.
        - É verdade, mas tenho que preparar o almoço das meninas. Trago a Tati para casa no final da tarde, está bem? Ainda devem estar brincando com as bonecas novas.
        As duas se despediram e entraram em suas casas. A rua ficou vazia, assim como o coração de Luca. Ele não existia mais no mundo lógico. Ele havia morrido e acabava de receber essa notícia junto com a notícia de que seu melhor amigo era considerado louco por sua causa. Agora sim ele queria morrer de verdade.

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